Referência: In: O Globo, Opinião, p. 7, 01/07/2002.
O universo virtual avança e a questão se coloca com mais força: a tecnologia vai tomar o lugar da humanidade? Com efeito, as relações interpessoais estão se modificando, e o elemento técnico já é constitutivo da nova identidade humana.
Entretanto, por um certo prisma, nunca fomos tão humanos. Antes, nas empresas em que a informação digital não circulava permanentemente e não era necessário renovar os conhecimentos a todo instante, havia funções cristalizadas – chefes que detinham o poder e empregados que obedeciam cumprindo rigorosamente seus papéis. Hoje, as empresas crescem na proporção em que são capazes de criar novas redes de conhecimento entre funcionários e parceiros, e muitas o fazem através de ambientes tecnológicos. Isso exige mobilidade, troca, diálogo. Faz rever paradigmas e conceitos. Os projetos são assumidos por equipes multidisciplinares, que precisam negociar com olhares diversos sobre o mesmo foco. Trabalhar é marcar presença com sua identidade, é ser capaz de aprender e gerar mudanças. Tende a desaparecer o trabalho-dependência do outro para surgir o trabalho-complementar ao do outro, que integra e associa competências.
Nas instituições educacionais, não se sustenta mais o sistema de ensino do professor-transmissor que apresenta os mesmos conteúdos para turmas com alunos tão diversos, e depois aplica uma única prova, como se os percursos fossem idênticos. Um novo modelo pedagógico é exigido pela era da interatividade, das múltiplas janelas abertas do zapping e da hipertextualidade, que torna as cabeças mais capazes de lidar com várias situações em tempos diversos, que exige que se respeitem os ritmos e os percursos individuais de navegação, que promove a criação de teias curriculares e redes de aprendizagem cooperativa. Tudo isso desafia as salas de aula a criarem novos sistemas de relacionamento interpessoal, nos quais professores e alunos são pesquisadores que aprendem em colaboração em processos novos e criativos Os estudantes que navegam pela rede aprendem a transitar num mundo onde há visões e culturas diversas que são convidadas a produzir conhecimento coletivamente, que trazem novos desafios éticos e novas questões sociais.
Tende a desaparecer o ensino-recepção da escuta do outro, para surgir a aprendizagem-com o outro, na qual o estudante é um indivíduo com desejos e interesses, e interage com os demais em processos flexíveis e dinâmicos. semelhante vale até para as amizades, que alargam horizontes no mundo virtual – hoje interagimos com amigos que sequer conhecemos pessoalmente, mas com quem trocamos idéias e sentimentos. Alguns chegam aos “ircontros” – encontros reais com quem se conheceu no mundo virtual.
Nos cursos mediados pelo computador, há espaços nas ferramentas destinados exclusivamente à interação pessoal: ao contrário do que ocorre nas salas de aula presenciais, os alunos têm necessidade de se envolver, de partilhar suas impressões e suas histórias de vida. A alta taxa de evasão em cursos à distância que não investem na criação do conceito de comunidade comprova que só é possível aprender e envolver-se na aprendizagem quando existe essa relação interpessoal. A palavra-chave deste momento é o link. Talvez “laço”, em português. Laços entre sujeitos que só podem entrar na roda, na rede, quando assumem o próprio papel e ganham lugar no mundo, mostrando sua cara. Mais autônomos e também mais capazes de ser com o outro. Possivelmente, mais seguros. Certamente, mais felizes. A tecnologia, o hipertextual, apenas materializa, com seus links, o que já estamos fazendo: tornando-nos protagonistas da navegação no mundo e estabelecendo laços entre conhecimentos e pessoas.
Não queremos nos tornar seres plugados em monitores; justamente por isso, parece que estamos buscando maior qualidade ou, pelo menos, alternativas humanizadoras para nossas relações. Os relacionamentos são agora mais complexos, devido à grande rede de pessoas com quem nos comunicamos. O conceito de comunidade muda: de um bairro ou de uma cidade, ampliamos o horizonte do local para o global. A tecnologia promove a criação de uma espécie de interdependência social.
O próximo passo: valer-nos da tecnologia para construir laços enquanto cidadãos, para que estas identidades também ganhem espaço no jogo social, no qual ainda prevalece a relação bipolar obsoleta das sociedades da era industrial, onde poucos possuem o saber, o capital e o poder. É preciso concretizar o link na vida cidadã para associar competências, estender o diálogo, garantir o espaço do povo através desse vasto mundo cibernético de poder disseminado que se parece muito mais com a democracia. Essa é uma das formas de utilização da Web ainda por explorar: seu enorme potencial subversivo, contra a corrente da robotização.
É que queremos mais do que simplesmente tecnologia: buscamos um universo digital para servir melhor a essas pessoas que, através dos links, dos hipertextos e das redes, expressam e acalentam um único desejo: ser plenamente pessoas, com toda a humanidade que lhes foi destinada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário